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Valete de Copas, invertido

Postado por Ana C. |

Um dia ele apareceu, diferente de todos os outros da matilha a que ela estava habituada: lobisomem. Chegou com voz sedutora e gestos macios e ela – acostumada a confiar que era – abriu, com sorriso e perfume de lavanda, a casa/peito/alma/corpo/sonhos para aquele que só lhe devoraria as entranhas, predador natural que era.
Mas isso só descobriria depois da primeira lua cheia, quando o até então doce companheiro, transformado, lançou-se sobre ela como um lobo feroz. (Close no olhar do bandido.) Ela, gemendo, sentiu sua carne destroçar entre suas presas, polpa macia da vida estraçalhada, seiva gotejando, ferida aberta envenenando o que restou: o certo parecia errado, o dia parecia escuridão.
A avó tentou avisar, minha filha isso não é coisa que preste não. Mas ele foi ligeiro, deixando-a órfã de qualquer influência (nem a vontade de mil conselhos o poderiam deter). Prosseguiu na corda bamba, enquanto crocodilos cheios de expectativa aguardavam embaixo a hora do tombo, bocas escancaradas, mas para surpresa dos descrentes ela não caía. Folha segura pelo vento em pleno ar.
Certa feita, quase distraída, enxergou além das aparências e o viu como realmente era, monstro de aspecto sombrio como uma nuvem de trovoada. Desde então o lento despertar: faria de tudo para esquecer mas ver é irreversível. Como conviver com tal escuridão? Coração em chamas. Escrava disfarçada de liberta, deu-se conta de que as correntes mais fortes são as que forjamos nós mesmos e pôs-se, lenta mas firme, a desfazer nós.
Tornou-se de aço, e as investidas do homem lobo já não lhe dilaceravam tanto, certa que o desfecho se aproximava. (Zoom nas mãos nervosas da moça.) Mas se passaram muitas luas até reunir coragem e enfim chegar o dia em que se pintou de azul e partiu para cima dele, sem medo, com a força que a libertação traz. Ele ficou tão aturdido, jamais imaginara reação, que demorou um tempo a aceitar o que acontecia como real.
Em desorganizada retirada, ela correu apenas com a roupa do corpo sem saber se o que escorria pela sua face eram lágrimas ou gotas de chuva. Caiu. Levantou. Caiu de novo e tornou a levantar, encharcada. Só depois de muito tempo, com pontadas no peito, em farrapos, machucada e exausta, parou um pouco tentando recuperar o fôlego. A essa altura ele já vinha atrás dela, feroz e brutal, varrendo tudo disposto a encontrá-la, posse sua.
Sentiu-se infinitamente sozinha, incapaz de sequer lamentar as escolhas que a levaram até ali. No seu desespero só desejava que o fim chegasse logo, quando ouviu um barulho atrás de si. Movimento de uma pedra que liberta a água encerrada numa represa, fechou os olhos. Pensou em deixar-se afogar. Mas foi com inesperada suavidade que alguém lhe tocou a carne trêmula. Espantada, viu diante de si um desconhecido que a olhava com ternura e que a ajudou a levantar. Em meio a um choro convulsivo e frases entrecortadas ela contou a sua história para quem não esperava encontrar, esquecera que cada homem podia ser um amigo.
Ela ficou em segurança e ele, guerreiro sagrado e caçador de feras, foi ao encalço do lobo e só descansou quando tornou o mundo um pouco mais leve da maldade. Justiça, antes à tarde do que nunca. Ele voltou para escoltá-la até o lar e ela se percebeu a voltar com uma doçura no peito que também não esperava. Um arco-íris dividia o céu. Mas mesmo olhando toda a beleza que pulsava em volta, ela nunca mais se distrairia pelo caminho.
Quem sabe, agora, até voltasse a usar aquele chapeuzinho vermelho que ganhara da avó, do qual tanto gostava e que até havia esquecido..., pensou com súbito ânimo enquanto abria o portão.
(Close, fim.)

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