12:08

Aviso prévio

Postado por Ana C. |

Ela escuta o barulho da torneira pingando na cozinha, ploc, nas xícaras sujas e talheres inúteis, plic. Mais uma coisa que ele deixou de fazer, simulou, esqueceu. Com o tempo deixará de ouvir, ploc, embora a goteira não vá parar de pingar, plic. Com o tempo deixará de sentir, ploc, embora a esperança de nem sabe o que continue abrindo fendas em seu ser.

Mas na verdade, e ele sequer imagina isso, o pior de tudo, o que mais incomoda é esse maldito céu nublado: opressor e neutro ao mesmo tempo. Antes um sol escaldante, ou uma ventania de arrancar árvores e entortar postes. Ou pirotecnia de raios e relâmpagos inundando céus. Nada. Só essa neblina, gosto de coisa que já foi sem ter sido, como criança que tem tudo para dar certo mas prefere rumo errado.

Rainha de pedra, é quase com dor – seria se dor houvesse – que lentamente fita o homem ao seu lado, olhos secos. Os dele lembram à chuva fina e gelada que cai lá fora, encharcando lentamente, quase sem querer. Estáticos e calados se olham, e não cabe gesto ou frase. Queriam que as coisas tivessem sido diferentes de alguma forma. Mas esse desejo também não arde mais, demônio congelado.

Plic.

É sem surpresa que percebe que os olhos dele estão a inundar tudo, lixos e destroços pelo chão, vestígios de carinhos e vontades, longínquos sons de risadas primaveris. Que o ruído da torneira pinga-não-pinga-pinga acaba de ser abafado pelos sons dele, subitamente úmido e vivo à sua frente, aguando. (plic-plic-plic-plic-plic... ad infinitum)

Pensa em levantar-se, passo resoluto e face comedida, e sorvê-lo, tomar tudo para si. Mas a bem da verdade é que nem sabe se quer ainda sentir sua essência, sal e madeira rústica, penetrando sua existência. Por isso não faz o gesto único que poderia mudar desfechos ou iluminar a encruzilhada nessa neblina. Deixa-se ficar apenas olhando, catatônica, até que o que foi um homem não passa de um monte de água a escorrer pelos ladrilhos em direção à porta da frente.

Ainda hesita, será este o final? Buscar um pano seco e acabar logo com isso, varrendo os últimos despojos? Respira fundo, 3 vezes, e se decide. Pensa que, afinal, é chegada a hora de estrumar flores.

Da cozinha o ruído persiste. Ploc. Plic.

3 comentários:

Anônimo disse...

Um coração aturdido (sístole/ diástole)freneticamente.

Paula de Assis Fernandes disse...

Ana, tô sem palavras. Juro.

Drica disse...

Cada vez melhor =D

Que bonito!