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Dia de circo

Postado por Ana C. |

Quando Junival viu um circo pela primeira vez ele tinha nove anos e estava ajudando o pai a arar o campo. Quase nunca passava ninguém pela estreita estrada de chão batido ao lado da casa, desvio que acabava sendo mais longo que pelo asfalto para a vila mais próxima, exceto as carroças dos vizinhos. Assim, não foi sem espanto que Junival viu passar não um, mas diversos caminhões e trailers, multicoloridos e repletos de música.
Olhou para o pai com um olhar suplicante e, quando com um sorriso ele balançou a cabeça que sim, largou o arado ali mesmo e saiu correndo atrás da caravana. Nunca tinha visto nem ouvido falar de alguns daqueles animais enjaulados. Tão deslumbrado estava que não percebera que o leão já não tinha muitos dentes ou que o elefante parecia moribundo. Tudo era mágico.
Descobriu que o circo ficaria na vila cerca de uma semana e voltou para casa com o coração pesado de sair de perto de toda aquela gente barulhenta e feliz. Por ele ficaria olhando eles arrumarem as coisas até terminarem mas a mãe, indignada com a inconseqüência do pai, mandara um de seus irmãos mais velhos ir buscá-lo antes que fosse ela mesma e o trouxesse erguido por uma das orelhas.
Junival voltou para a casa contando pra todo mundo das maravilhas que vira. Mal podia esperar pela estréia, que seria no outro dia. Mas o pai, com um ar pesaroso, lembrou que mesmo que quisesse não tinha dinheiro para levar os sete filhos no tal circo, e que mandar apenas um deles seria injustiça. Com os olhos secos Junival passou a noite insone, tentando descobrir como entrar no circo. Não sabia como faria, só sabia que tinha que fazer.
E fez. E foi aí que descobriu o que queria fazer o resto da vida: qualquer coisa, desde que se casasse com a trapezista. Queria viver por todas as noites da sua vida aquela aura fantástica e com aquela lindeza leve da moça que voava no ar. A trataria como a deusa que sentia que ela era. Voltou todas as noites para vê-la e, quando o circo finalmente partiu, todo mundo já sabia que Junival um dia se casaria com uma trapezista. Um dia, porque por enquanto precisava ajudar a família. Tinha quatro irmãs menores e a mãe estava grávida mais uma vez. Só os dois irmãos e o pai não dariam conta. Sem falar que cria de pobre é igual pintinho novo: perde-se muito, dizia a tia Alzira.
Aos 15 anos não havia esquecido do seu sonho, mesmo nunca mais tendo passado circo algum por ali. Mesmo quando namorava Rosa, a filha do vizinho, Junival era totalmente honesto: “olhe Rosa, você sabe que eu até gosto de você mas acontece que eu vou é mesmo me casar com uma moça do circo. Desde já você tá avisada, que é pra não ficar sofrendo por aí depois que eu me for”. Rosa ria. Achava até engraçado que ele tivesse essas idéias e fosse assim, um pouco maluco, deixava ela mais apaixonada um pouquinho.
Por isso, quando deu-lhe a notícia que estava grávida, Rosa não entendeu porque o rosto de Junival endureceu e seus olhos se turvaram. Logo agora que, irmãos crescidos, ele estava pronto pra correr o mundo atrás da sua trapezista! Casou, como homem de bem que era faria. Nunca mais falou em circo e em trapezista, nem nunca seus filhos souberam de seus sonhos de juventude ou entenderam porque o pai era às vezes tão calado e tinha aquele ar distante. Junival desde então não ousara mais entrar em circo algum. Temia não ser forte o suficiente.
Foi só depois de velho, já cego pela catarata, que contou para as crianças que freqüentavam sua casa histórias de como era lindo um circo que conheceu na infância e de como os artistas eram todos magos, principalmente a trapezista.
Hoje, faz quase um mês que Junival está em coma e ninguém saberia dizer o que é que o mantém ainda agarrado à vida, e com uma face plácida e meio sorriso nos lábios. O que ninguém sabe é que agora, finalmente, Junival realizou seu sonho. Que ele é jovem e cheio de fantasias mais uma vez e que está voando nos trapézios ao lado de uma linda moça que lhe sorri, enquanto tambores vibram a cada acrobacia e as palmas do público os embalam. Não sabem que a moça é mágica, e que ele só não partiu ainda porque não chegou a hora do circo deixar a cidade. Que ele nunca mais ficará para trás.
Não sabem que, agora, todo dia é dia de circo.


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