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Poços e nuvens

Postado por Ana C. |


Porque dessa vez foi diferente de todas as outras.
Antes mesmo de vê-lo sabia que era ele.
Não precisava conhecê-lo para sentir que sim, enfim chegara aquele-nascido-do-seu-desespero-de-não-encontrá-lo. O resto foi conseqüência. A negação. O medo. O ridículo de pensar que endoidara de vez, o que até demorou afinal. Ria de si mesma, uma moça repleta de certezas mas que não sabia ao certo quais certezas eram essas. As coisas são sempre vésperas.
Então esqueceu a história, contrariando todos os presságios. Até vê-lo de fato. Que era exatamente como sempre soube que seria. Não mais, não menos. Se acreditasse em perfeição, conjunção astral, destino, ironia dos deuses, ali estava. O morango à beira do abismo. A estrela derradeira. O abraço em noite enluarada. O oásis quando o calor alucina e a morte está próxima. O centro do medo. Todas as coisas.
Vinha cansada e de caminhos tortuosos, caminhara muito mais que o necessário, perdeu-se, trocaram as placas durante a travessia ou não as viu, ou não entendeu. Passara pela paixão e seu desespero. O querer e querer e querer. A grande falta, os desejos violentos, as gulas insaciáveis, as urgências perigosas.
Duvidou, porque todos já pensamos ter acertado antes quando, na verdade, estávamos redondamente enganados. Foi quando parou, com medo do abismo. E tentou esquecer.
Daí a angústia. Medo de pular, certeza de acabar no chão, e o cair não durar tanto quanto pensava. Mas não importava o que fizesse, e fez muito no esforço de não querer alguma coisa que jamais teria, o pensamento acabava terminando nele. E nem sabia o motivo pelo qual a simples lembrança do seu sorriso iluminava o dia e aquecia seu coração. Só sabia que todos os sentimentos anteriores, que julgara enormes e profundos, de repente se transformaram em cenas de filme B.
Desistiu de entender. E, sabendo que daqui a pouco não estaria mais presente, atirou-se com vendas nos olhos. E teve. O sonho concretizado.
Como conviver depois com a sempre ausência? Como sobreviver ao que virá depois desse momento? Cada hora que passa lhe fere e a última lhe matará. Há um querer que procura. Há um querer que se amedronta e se esquiva. E há o não querer. Em meio à confusão que escolhe e aceita – quer viver sempre acessa – sente ao mesmo tempo em que se destroça o maior carinho de toda sua vida. Turbilhão.
Podia ter durado uma noite. Podia não ter acontecido. Porque não era necessário. Já preencheria todos os dias da sua vida.
Não chore mais, meu bem, que na saída do labirinto há um dia de sol e nunca mais seremos confusos. Além disso, ele não sabe do poder que tem sobre você, de lhe iluminar ou escurecer, de tragar e afogar quando quiser. Que ele nem sabe que engole e ao mesmo tempo devolve todas as coisas do mundo. Não sabe e não entende, talvez porque não queira saber nem entender, então não se dilacere sem necessidade.
Sente-se uma velha doida, que joga comida fora e guarda trapos coloridos. Só. Pensa nele e o coração, normalmente desvairado, se enche de vento e permanece tranqüilo, de uma serenidade de céu despejado que nunca tivera antes. E em todas as noites passadas em claro, implorando para que o dia não chegasse nunca, a certeza continuava. Mas chegava. E ele partia. A cada separação a aproximação e o medo da ruptura definitiva, de não suportar e sofrer pelo que não pode acontecer.
Malas prontas.
A manhã em que partiu rompeu mais radiosa do que costumam ser as manhãs. Os passarinhos cantavam no jasmineiro do vizinho, o cheiro invadia a casa. Toda aquela claridade feria seus olhos e os dele, esverdeados de mar. O último sorriso, aquele que moveria o mundo, fez tudo ficar ainda mais brilhante e foi como se a tal iluminação a ofuscasse e transpassasse.
Como sentir naquele momento exatamente como sentiria depois de toda a vida e já no fim de tudo será esse instante iluminado que lembrarei derradeiramente, desse cheiro de jasmins que essa brisa que toca meu rosto como um carinho bem quando meu coração também se enche de vento que bem sei que nunca mais poderei sentir coisa alguma mesmo que eu lanhe meu corpo com pedaços de estrelas nem assim pois ele dessa vez engoliu mas não devolveu, o meu bandido, ele confiscou exatamente todas as coisas e só na minha hora derradeira terei novamente esse instante com o cheiro de jasmins que essa brisa trouxe da casa vizinha, esse bando de nuvens que passam ligeiras no azul do céu, e talvez a resposta dessa pergunta que não pára de martelar indagando indagando indagando se tudo isso foi um encontro ou uma despedida e é quando penso que preciso sair da rua antes que toda essa claridade que vem dele me cegue e eu nunca mais ache o caminho de volta para a casa de súbito vazia, escura e triste. Mas eu sei quê.

2 comentários:

Aline disse...

Ana.. é isso!! identificação à primeira leitura.

Luciana disse...

Olá Ana...

gostei, de verdade... o problema é o quase tocar da solidão, mesmo que não esteja bom por ser perfeito demais, não sabemos nos desligar...

=**